Versão integral da entrevista realizada pela redação de
Filme Cultura com
Cleber Eduardo. Uma edição desta conversa foi publicada na revista impressa (ed.54), pg. 35.
Filme Cultura: Cléber, num determinado momento a Mostra de Cinema de Tiradentes passou a ter um certo perfil na sua linha curatorial, de focar num cinema inovador, e foi aí que surgiu a mostra Aurora, não?
Cleber: Essa é a quarta edição da Aurora. Antes esse não era o perfil predominante da mostra, ela sempre incluiu filmes com propostas mais populares, mas já havia uma abertura para isso. O que aconteceu nesse momento foram duas coisas: até a edição de 2006, antes de eu entrar, a mostra não tinha inscritos, só tinha convidados – e isso faz diferença, pois os filmes convidados eram aqueles que passavam por outros festivais. Em 2007, quando eu comecei a fazer a curadoria, foram 35 longas inscritos. Aí, pela primeira vez, a mostra teve contato com uma outra produção. A Raquel, diretora da Mostra, tinha percebido que havia uma demanda de espaço de longas para que houvesse essas inscrições . E, exatamente neste ano em que eu entrei, entre os inscritos havia um número muito de grande de primeiros e segundos filmes, com características que fugiam àquelas que normalmente os festivais de cinema estavam exibindo. Já antes, sempre foi mantida uma mistura, juntando filmes de maior apelo com outros de viés menos comercial. Com a mostra Aurora, veio a ideia de dar um holofote a esses filmes que tiveram poucas exibições ou foram colocados à margem em outros festivais. Não havia nada muito claro sobre o que era esse cinema brasileiro contemporâneo. Além disso, esse foi o momento em que a Mostra também se abriu para as produções realizadas em vídeo, e isso modificou completamente o perfil da programação. A partir dessa abertura, houve um aumento avassalador de longas-metragens em digital, chegamos a ter 80 longas inscritos por ano.
FC: A maior parte dos filmes inscritos é em digital?
C: Sim, a imensa maioria. E dentre eles há um maior número de documentários. Uma das características que a Mostra sempre teve é o espaço para o debate com os críticos, que são protagonistas da mostra junto com os realizadores. Isso já existia antes de eu entrar, a gente não começou do zero. A mostra Aurora não dá prêmio em dinheiro, a ideia é que ela sirva de vitrine para esses filmes. É para provocar a discussão sobre esses filmes, não para estimular a politiquice em torno de prêmios em dinheiro. A gente vê cerca de 80 inscritos para selecionar sete filmes, então ser selecionado para a Aurora já é um certo mérito, independente de prêmio.
FC: No geral como é a qualidade desses 80 filmes?
C: Na maioria, são muito precários. O que eu tenho percebido é que houve um ganho na qualidade técnica em filmes muito ruins, pois antes eles eram mal-feitos. Eu não sei se é por causa da expansão de oficinas, nem se é graças a equipamentos melhores. Muitos são documentários de tom sociológico ou antropológico, ligados a ONGs e afins.
FC: Quando você escolhe esses sete filmes, quais são os critérios que utiliza? De que maneira há uma política e uma estética nessa escolha?
C: O primeiro critério é que esses sete filmes não cheguem à mostra Aurora pré- legitimados, ou seja, não entram os filmes que já passaram em Cannes ou ganharam o prêmio principal em outros festivais. Esse é o primeiro critério, que sejam primeiros filmes em condições mais ou menos justas entre eles, e que não chegue um pré-favorito. No ano em que tinha o
Belair, por exemplo, eu achei que ele chegaria com alguma vantagem sobre os outros, seria um grande favorito. Aí é preferível exibir num horário nobre do festival, num fim de semana ou uma sexta à noite, mas não incluir na seleção do Aurora. A partir deste critério, nós vemos o que existe à disposição. Nem sempre se tem sete filmes com a força ou a homogeneidade que a curadoria gostaria. Depende muito da safra de cada ano. Não tem como inventar filmes. Dentro das circunstâncias, eu procuro desenhar um perfil para a Mostra.
FC: Que perfil seria este? Você busca vanguardistas?
C: Olha, quase nada que escolhi eu consideraria de vanguarda. Eu busco filmes que me causem algum tipo de estranhamento, filmes que quebrem as expectativas. O que me interessa é tentar criar outro padrão de normalidade, um outro padrão do popular. Hoje, eu acho que o público de Tiradentes suporta e gosta de determinados filmes que não aceitaria há alguns anos.
FC: Durante a mostra existe um clima propício para que as pessoas se “arrisquem” a novas experiências?
C: Exatamente. Existe um clima de abertura para o que a gente entende como diferente, e esse diferente pode ser mais ousado, ou pode não ser. Não tenho nenhuma admiração exclusiva por filmes experimentais e vanguardistas que quebrem a narrativa, pelo contrário. O que me interessa aqui é que haja alguma reflexão sobre os filmes escolhidos, pois a mostra não resume o cinema contemporâneo brasileiro, ela não pretende dar conta disso. Ela dá espaço para esse cinema dos filmes sem edital, de baixo orçamento, sem lei de incentivo, sem distribuidora. Eu acredito que nesse lugar de diretores jovens, baixos orçamentos, com um clima vigente de pessoas que se juntam para trabalhar, poderá surgir alguma coisa com uma pulsão nova. Porque os compromissos são menores. Eles podem correr mais riscos porque são mais jovens, não têm filhos ainda, não têm que pagar pensão.
FC: Quais os filmes que você apontaria como inovadores de fato?
C: É muito difícil falar de inovação ou invenção nos filmes que se encaixam nesse perfil, pois é um segmento que tem uma geração muito consciente do que foi o cinema e do que está sendo o cinema. Essa geração é muito reverente e muito consciente da relação que tem com a produção mais antiga.
FC: Então vamos por outro caminho. Vamos contrapor a invenção à repetição de procedimentos. Se não há inovação, há repetição em que procedimentos? Dentro de que modelos e de quais valores?
C: Acho que não existe uma quebra, existe uma aliança com determinadas linhagens históricas e segmentos contemporâneos de cinema, mas não uma invenção, um estar à frente. Existe uma sintonia muito consciente, eles são cinéfilos, são de uma geração que vem da universidade, então esses processos são muito vinculados a certos filmes, certos cineastas.
FC: Mas essa consciência que precede os filmes não é, de certa forma , uma inovação no panorama do cinema brasileiro?
C: Aí existe uma questão que é sempre um problema para mim, não consigo ter uma certeza sobre isso. É essa nossa necessidade de organizar a ideia de cinema brasileiro sempre numa lógica interna, fora do que está acontecendo com todo o cinema mundial. Acho que temos nessa geração uma necessidade muito consciente de estar na pauta, e a entrada de curadores internacionais em Tiradentes começa a evidenciar isso também. Lembrei agora daquela divisão que o Jairo Ferreira fazia, baseado no livro do Ezra Pound, entre os cineastas inventores, diluidores, mestres, artesãos e beletristas, seguidores de moda. A questão é em que ponto eles estão inventando e até que ponto estão diluindo, entendeu? Isso se a gente for trabalhar nessa polaridade de invenção e diluição. O que não quer dizer que esses filmes são excessivamente programados como diluições dos inventores, mas eles estão querendo colar nos inventores, estão querendo criar a partir dos inventores. Às vezes os filmes acabam ficando muito à sombra das grandes árvores dos inventores.
FC: Quais são os modelos vitais desses filmes recentes?
C: Os que estão trabalhando numa rarefação dramática, numa duração do plano que não é necessariamente a duração do acontecimento. Isso em primeiríssima instância. De uma certa maneira, quem esteja trabalhando com o formalismo do enquadramento, da relação entre câmera, espaço e formas de composição dos atores ; mas trabalhando também com quase uma fenomenologia do acontecimento. Essa estetização do fenômeno é algo muito comum nesse cinema dos anos 2000 e está presente nessa geração nova em vários filmes. A matriz disso, hoje, vem dos asiáticos, mas se pensarmos historicamente eu diria que Antonioni ganhou. E ganhou até do Bergman neste sentido, porque o Bergman trabalha com uma dramaturgia da exasperação, que não há em Antonioni e nem nesses filmes recentes. O filme do Thiago Matta Machado,
Os residentes, difere disso:
Os residentes vai trabalhar com outra coisa, que parece até um pouco datada, referente demais a um determinado momento do cinema, mas que trabalha com uma outra lógica, ele não está procurando esta rarefação. Se comparado aos filmes da mesma geração, nele há uma certa agressividade que é completamente ausente na maioria desses outros filmes. Um pouco ironicamente, eu chamei estes filmes, em algum texto meu, de “apatia feliz”. É uma falta de revolta, falta de reatividade, uma certa apatia afetiva, afetuosa, mas um pouco resignada: aquela que procura a beleza da gota d’água, mas não se preocupa com a chuva. Mas acho que isso não vem somente de uma produção de filmes, mas sim de um momento histórico.
FC: Mas esse ano tinha um filme que falava exatamente sobre chuva incluído na mostra, que foi o
Enchente.
C:
Enchente era um filme que destoava do Aurora, mas ele estava ali exatamente para isso. Era uma tentativa minha de esvaziar um certo monotom que o Aurora corre o risco de ter. Se você for ver ano a ano, não são sete filmes iguais que são exibidos lá. No entanto, são sempre os dois vencedores por ano que constroem a identidade do Aurora, que não é minha, é de quem vai lá ver os filmes, de quem escreve, faz o relato.
FC: Você apontou que esse cinema autoconsciente é tributário dos filmes do Antonioni, passando por Tsai Ming-Liang e Apichatpong Weerasethakul, e é esse cinema que encontra mais ressonância para além de Tiradentes. Então, além deste, existem outros cinemas , existem outros modelos e matrizes?
C: Certamente existem. Esse cinema que destaquei é o que estaria mais próximo da pauta que vocês propõem: o cinema de vanguarda, de experimentação e ousadia. Os filmes mais ousados são esses filmes conscientes das suas citações e referências, o cinema da rarefação dramática e do alargamento do plano, de um certo recuo da significação e da enunciação, algo muito evidente nessas produções, assim como o recuo dos olhares, dos posicionamentos. Eu dou aula numa faculdade em que muitos trabalhos dos alunos seguem esse caminho: permitir interferências, recuar o controle. Não é à toa que o Commoli é o pensador da moda, pois ele faz esse elogio ao risco do real, do recuo do roteiro, do não planejamento excessivo. Mesmo nos filmes muito planejados existe esse recuo. Muitas vezes eu fico confuso sobre o que é verdadeiramente o olhar do filme perante aquele tema, no entanto eu reconheço que é neste universo que está o cinema brasileiro mais inquieto. Porém, nem ele é único em Tiradentes, nem acho que seja radical, um cinema de quebrar os pratos. Por exemplo, tem um documentário de Santa Catarina,
Sistema de animação, que ninguém lembra quando falam da Mostra. O Aurora ficou mais associado a esse cinema mais difícil, mais lento, mais bem enquadrado. Estar lá significa em certa medida um selo de qualidade, uma espécie de legitimação, por isso é importante pôr de vez em quando uns filmes toscos em que eu vejo valor, mas que têm um lado mais selvagem, mais precário, mais intuitivo. Eu tenho admiração pelo cinema racional, mas também gosto desse outro mais intuitivo, com mais frescor.
Sistema de animação foi um caso desses, empolgou a plateia que assistiu, foi uma espécie de
Conceição daquele ano. O próprio
Conceição – autor bom é autor morto foi um filme que só não entrou no Aurora porque a mostra ainda não existia, já que era perfeito para ela. O
Conceição foi aplaudido em cena aberta pelo público. Eu não acho que estes filmes estejam recusando a narrativa, por exemplo, não estão. Alguns podem estar propondo uma nova forma de narrativa, mas, por exemplo, um filme como
Os monstros tem a rarefação, tem planos longos, mas tem uma narrativa linear, com personagens muito bem delineados, demonstrando noção de cena, mas num outro ritmo de observação dos acontecimentos
FC: Não é invenção, mas é inquietação?
C: É , podemos dizer que haja uma inquietação, isso é inegável, mas eu não vejo essa inventividade, tal como a gente entendeu historicamente.
FC: Mas você vê a experimentação acontecer no cinema expandido, no chamado pós-cinema, no cinema relacionado às artes plásticas? Você se interessou por algum tipo de experimentação que não tenha espaço dentro da Mostra?
C: Olha, eu acho que existem lugares mais apropriados para experimentações do que o cinema. Não acho que o cinema seja o lugar privilegiado da experimentação. A ideia de experimentação nunca foi e nunca será hegemônica no cinema como é, por exemplo, nas artes plásticas contemporâneas. No cinema você pode até romper algumas fronteiras, mas lá dentro tem que manter sempre os mesmos dispositivos, isso já é um limite na experimentação no cinema e não é à toa que muita gente está indo para as galerias dizendo que os dispositivos do cinema não interessam mais. Porém, isso não diminui o cinema. Não é fazendo diferente que necessariamente aquilo fica bom. Às vezes é melhor ver um filme bem ordenadinho.
FC: A cada ano a gente vê a predominância na Mostra de uma cinematografia de uma parte do Brasil. De certa maneira o olhar de Tiradentes procura algo de novo? De que maneira isso é um diferencial ou pode se tornar um problema para a mostra?
C: A distribuição regional não tem importância nenhuma, isso não é um critério. Eu diria que, para a existência da Mostra e sobretudo para a existência do Aurora, ocorre uma interregionalização – porque ela não é uma regionalização fechada, é uma regionalização porosa, com pessoas de diferentes estados intercambiando com outras. Pessoas que não são do Rio e São Paulo, são de Minas, Ceará, Pernambuco. Eu acho isso necessário para ter essa pulsão, a independência para organizar o filme. O que importa são os filmes. Porque no ano passado tinha um filme legal da Paraíba, de João Pessoa, e chega esse ano e o filme bom da Paraíba agora é de Campina Grande. Não importa a origem, o que vale é trazer pessoas novas, que normalmente não chegavam com os seus filmes. Isso também é uma das aberturas trazidas pelo digital. O Festival acaba sendo um lugar de muitas trocas e armação de filmes, muitas parcerias começaram ali. O Ivo Lopes Araújo, por exemplo, assinou a fotografia de filmes de várias pessoas desse circuito. Não tem essa questão da cota regional, o que tem é uma atenção e interesse pelos filmes, de onde quer que eles venham. Tem anos em que a produção do Ceará está mais forte, anos em que Minas está mais forte. Existem núcleos muito fortes em Pernambuco, Ceará e Minas.
FC: E o eixo Rio/São Paulo? Você acha que a inovação pode estar tolhida por um sistema que já existe? Ou talvez o grupo seja tão grande que não haja figuras específicas que se destaquem?
C: Rio e São Paulo estão sempre presentes, mas são casos diferentes, têm caminhos muito próprios. O caso do Carlos Adriano, por exemplo, ele segue o caminho dele, não é unido a um grupo de cineastas. Outro caso é o Rubens Rewald, um professsor da USP que também não está dentro de uma cena cinematográfica. No Rio até pode haver cineastas unidos que saíram todos ou boa parte da UFF, mas não necessariamente constituem um grupo. Eles têm núcleos próprios, independentes, particulares, cada um desenvolve o seu caminho. Não existe essa ideia de colaboração mais ampla que você vê em Minas , Ceará e Pernambuco. Posso estar exagerando, mas não há em São Paulo e no Rio uma novíssima produtora como tem em Pernambuco a Trincheira ou a Símio, em Minas a Teia e no Ceará a Alumbramento. Talvez porque exista a necessidade dessa união nesses lugares, enquanto no Rio e São Paulo isso é uma opção, não uma necessidade. E claro que o cinema cearense não é só a Alumbramento, não é? Existem outros realizadores, mas pelo menos ali na Alumbramento, na Símio, na Trincheira, na Teia e agora na Filmes de Plástico em Minas Gerais, o processo coletivo é quase uma condição para a existência do filme. São grupos razoavelmente fechados em si como coletivos, mas cada um trabalha no filme do outro. Não é que sempre dirijam coletivamente e, mesmo que aconteça, não é que será assim para sempre, porque eles já vinham fazendo curtas-metragens em que, por exemplo, um montava e outro dirigia – e agora eles se juntaram . Existe um fechamento poroso entre eles. No Rio e em São Paulo isso é um pouco mais complicado, mais difícil de acontecer mesmo.
FC: São coesões pragmáticas no caso de conseguir recursos e apoios, mas não necessariamente uma criação coletiva?
C: São pragmatismos que visam estabelecer uma comunidade. É claro que tem o lado afetivo, mas tem o seu lado prático.
FC: Todos esses coletivos defendem uma espécie de ligação da obra com a vida, uma visão bastante utópica, no sentido de que fazer os filmes dá trabalho, não é apenas uma curtição da vida. Em que medida essa autoria coletiva, uma inovação na estrutura de produção, porque era uma coisa rara décadas atrás, resulta em algum tipo de inovação nesses filmes? Mesmo que eles sejam diferentes entre si.
C: Num debate em que estavam fazendo uma comparação entre os filmes brasileiros baratos de hoje e o cinema marginal
underground dos anos 60 e 70, o André Gatti lembrou do seguinte: “Pode ter uma familiaridade aqui e outra ali, mas o cinema de hoje não tem nada de marginal, todo mundo tem CNPJ”. Todo mundo tem a mão na burocracia para dar um segundo passo. Não acho que as pessoas queiram fazer cinema só por afeto. Isto é uma condição para que as pessoas façam cinema, talvez elas não façam cinema se não for com afeto, mas ao mesmo tempo todo mundo quer se inserir, estrear, vender filme lá fora, os diretores querem passar seus filmes em Cannes. Nem todo mundo é Dellani Lima. O Dellani eu sei que não se preocupa com isso, faz os filmes dele e pronto, mas isso não é a regra. Eu não acredito nesse romantismo do pós-industrial, esse pós-industrial na verdade é um pré-industrial, no caso desse segmento. Todos estão querendo se inserir, só que com liberdade, acredito eu . É esse o lugar do paradoxo.
FC: A invenção é um desejo, como se não tivessem noção de quais são os caminhos abertos? Ou talvez estes caminhos estejam abertos demais?
C: Eu acho que estamos vivendo num momento de transição para alguma coisa que ainda está nebulosa. Algumas formas de produção permanecem, a maneira de ver filmes continua. Não acho que esta nova cinefilia seja substituta da antiga, acho que ela é complementar. Ela não substitui a ida ao cinema, o debate. Eu acho muito difícil a gente conseguir dar nomes e entender o processo contemporâneo, o que acontece de agora pra frente, porque acho que as mudanças serão cada vez mais rápidas, inclusive nas formas de estruturar a narrativa. As formas estão cada vez mais selvagens.
FC: Por outro lado, você falou que os planos estão cada vez mais longos.
C: Como uma forma de resistência.
FC: Mas há muitos filmes com planos cada vez mais curtos, não?
C: Sim, e também está na moda resistir pelo plano, existe um mercado da resistência pelo plano. O que o Thiago Matta Machado falou em Tiradentes eu concordo quase que integralmente: acho que existe um neobazinismo que não vai ao Bazin, que fala do Commoli, mas a matriz é baziniana. Hoje, fala-se muito sobre o tempo de duração do plano, o retorno à vida, só que é um “retorno à vida” estetizado, com uma luz bem pensada. Se a gente pega, por exemplo, um de nossos cânones contemporâneos, o Jia Zhang-Ke, ele tem uma aproximação muito direta com os espaços, com essa China contemporânea. Ele sintetiza o que é o paradigma do cinema contemporâneo, essa ideia de um contato com o tempo e com o espaço, mas com um desenho muito bem feito. A questão é: será que daqui a 10 anos o Jia Zhang-Ke vai continuar sendo um paradigma? Se alguns têm como paradigma o Apichatpong, para muitos dos meus alunos – jovens realizadores que estão entrando em festivais de cinema e nos próximos anos podem fazer os seus primeiros longas -, para parte deles o paradigma é aquele cortador de planos, Darren Aronofsky. Entre esses paradigmas, o seguidor de Aronofsky tem muito mais vontade e propensão a se tornar industrial, enquanto o outro seria a resistência. Mas seria uma resistência que ganhou prêmio em Cannes, uma resistência
mainstream. Se já é paradigma, não é mais resistência.
FC: Mas só se vê invenção e resistência nos filmes de planos longos?
C: Quando a gente fala em cinema experimental, mesmo no curta metragem, a gente imagina um cinema da velocidade, de choque entre planos, de mudanças abruptas, mas eu vejo muito pouco disso hoje, até em curtas-metragens. O que está se fazendo com a narrativa já foi feito antes. O que se pode mais fazer com a narrativa? Existe talvez uma proposta que se reinventa dentro da narrativa. Mas não acho que necessariamente seja uma invenção, acho que é mais um diálogo entre as formas de organização. Trata-se mais de retrabalhar algumas coisas, conscientes do que já foi feito antes, tentando arranjar um caminho um pouco diferente por onde já se passou.
FC: Não é possível inventar dentro da tradição ?
C: É, sim. Como já disseram, a tradição é saber acender o fogo, não é cultuar as cinzas. A tradição está aí, que bom que ela se constituiu ao longo do tempo. Mas criar a partir da tradição narrativa também não é algo novo. Existe uma grande crise de invenção, é difícil ser inventivo hoje. Quanto mais consciente, mais difícil é.
FC: Mas será que não tem invenção dentro das formas narrativas atualmente?
C: Não acho que o cinema contemporâneo seja tão inventivo. O que o Apichatpong está fazendo é uma coisa que não consigo relacionar com nada da tradição cinematográfica. Mas, fora ele, quem está fazendo algo novo? O Kiarostami estava numa experiência muito radical, é um caso. Existem grandes cineastas com grandes filmes hoje, mas a inventividade é para pouquíssimos. E ela não é exatamente uma característica de todas as épocas do cinema: ela se deu em alguns ciclos efervescentes, mas ela não foi permanente como cena.
FC: Por outro lado, sempre houve experimentadores, mesmo que quase ninguém veja.
C: Sim, sempre houve.
FC: Você em algum momento pensa que dentro dessa linha de trabalho na Mostra de Tiradentes esteja limitado em escolher esses sete filmes nesse formato tradicional? Não tem interesse em buscar um cinema além disso?
C: O que seria o cinema que está além disso?
FCC: O cinema da experimentação que estivesse explodindo a conformação da exibição da sala.
C: Mas quem está fazendo este cinema hoje?
FC: A Bienal deste ano estava cheia dessas coisas, desse cinema instalado…
C: Aí você está falando em mudar os dispositivos de exibição dos filmes, saindo dessa ideia de tela e cadeira?
FC: Sim.
C: Eu confesso que nesse aspecto sou um pouco conservador. Acho que ainda dá para lotar uma tenda fazendo com que as pessoas assistam a um filme inteiro. Num momento em que as pessoas só assistem a 10, 15 minutos de qualquer coisa, ver um filme inteiro, como diz o Pedro Costa, é uma atitude de resistência política, é quase reacionário. Desse reacionarismo eu gosto. Eu tenho um pouco de fobia da Bienal, pelo seu dispositivo. Não consigo ficar duas horas numa Bienal. Acho que é ótimo a expansão desses cineastas, mas eu não tenho paciência para parar ali e ver a maioria deles. Vi Apichatpong, Pedro Costa, porque eram coisas deles. É como se essas experiências se pulverizassem muito rápido na minha memória. Tem essa força presencial do momento, mas normalmente se apaga muito rápido da minha memória. Não é o equivalente a ver um filme numa sala escura por uma hora e meia numa imersão completa naquela experiência. Eu gosto muito de uma frase do Agamben, que diz: para você ser contemporâneo, é necessário que primeiro você esteja defasado com relação ao seu momento histórico. Eu gosto dessa ideia de um certo recuo do contemporâneo pra melhor entender, como dar um passo para trás. Eu sou meio desconfiado com o passo à frente. Eu diria que a minha percepção é antivanguardista. Eu prefiro ficar na retaguarda para poder analisar o rumo das coisas. Não me sinto capaz de manter sempre esse olhar para o olho do furacão. As coisas muito “contemporâneas” me incomodam.
FCC: Você falou que foi na Bienal ver o Pedro Costa porque era um “Pedro Costa”. Aí você me chamou atenção para a questão do autor. Em documentários como
Pacific ou os filmes do Coutinho, ou em ficções dirigidas coletivamente, o questionamento da autoria no Brasil está sendo trabalhado como uma coisa nova?
C: Talvez eu concorde no sentido de não estar muito na moda o realizador manipulador, o sujeito que decide o que vai acontecer, aquele que expõe a sua visão de mundo e de cinema. Acho que, nesse sentido, houve um certo recuo, com esse elogio todo do processo, do ator colaborativo, do fotógrafo que também é co-autor. Por outro lado, o que o Foucault chamava de culto ao autor continua prevalecendo, a grife do autor prevalece. A assinatura dele foi tão importante como grife, para os festivais internacionais. Por exemplo, o Tião, que fez dois curtas-metragens muito bem recebidos:
Eisenstein e
O muro, que foi para Cannes. A partir do momento em que
O muro foi para Cannes, os curadores internacionais querem um primeiro longa do Tião. Essa função-autor já nos coloca numa pré-disposição com relação ao que vamos ver, e é que o me leva a querer ver Apichatpong, Pedro Costa, embora eu seja crítico dessa idolatria do autor. Gosto das ideias do Foucault e do Barthes, que questionaram a figura física do autor e deslocaram a autoria para a própria escritura da obra. O Foucault diz que a marca da autoria é a singularidade da ausência do autor: o autor é aquilo que não está lá. Eu prefiro essa aproximação com os filmes. Estamos idolatrando diretores de curtas-metragens, diretores de um longa, e talvez isso possa ser um problema para eles. O Beto Brant é muito corajoso, por exemplo, porque podia sentar na poltroninha, acender o charuto, pedir uísque e fazer sempre os mesmos filmes, depois de
O invasor. Mas ele vai fazer o
Crime delicado, ou seja, deu uma rasteira em todo mundo. Depois fez
Cão sem dono e recentemente fez um programa bem maluco com um canal de televisão. E, se você pegar
Os matadores e comparar com a carreira de curtas do Beto, vai notar que não tem nada a ver. Ele é um cara que consegue se livrar das expectativas. Ninguém nunca sabe como vai ser o próximo filme dele.
FC: E o autor coletivo? Já existe uma expectativa com relação à personalidade coletiva?
C: Acho que os coletivos têm uma duração específica. Vou pegar o caso do Ceará, que é o mais atual. Eles formaram um coletivo para esses dois filmes, mas cada um deles tem seus próprios projetos individuais que podem ter menor ou maior proximidade. Cada um deles ali tem uma autoria, mas acredito que nenhum deles ali faria esses dois filmes sozinho, nenhum dos quatro. Aqueles filmes são o resultado da união deles. A questão da duração dos planos, que se vê em
Os monstros, está presente nos filmes dos irmãos Pretti e é menos presente nos filmes do Guto Parente. Por outro lado, me parece que o Guto tem uma certa cinefilia experimental como algo que compõe o estilo dele. Mas eu não me preocupo muito com quem é o autor ali dentro, a autoria é coletiva, e ela só existe porque aqueles quatro estão ali: se saem três, o filme será outro, mesmo sendo coletivo. O caso da Teia é diferente, eles não filmam coletivamente. Na Teia existe a crença nos projetos autorais, cada um tem o seu filme. Eles têm uma afinidade, verdadeiramente, mas cada um está ali trilhando o seu próprio caminho. A Marília Rocha, por exemplo, que começou com o
Aboio, um filme sob a sombra do Cao Guimarães, nos outros dois filmes, sobretudo neste último a gente vê uma cineasta chamada Marília Rocha, e não uma pessoa que conviveu com o Cao Guimarães. Já o filme do Sérgio Borges (
O céu sobre os ombros) é uma outra coisa, não está tão preocupado com o apuro da fotografia, é mais direto. Acho que eles têm a consciência de que corriam o risco de se repetir. Os cearenses terão que ter isso muito em breve, e tentar seguir para outro lugar, para variar.
FC: Você gosta da expressão “novíssimo cinema brasileiro”?
C: Não, porque não diz nada. Ele é novíssimo, e daí? Daqui a alguns anos a gente terá um outro novíssimo. Esse rótulo pegou. Ninguém escreveu um documento oficializando, a crítica acabou usando, mas originalmente era apenas o nome de uma sessão realizada no Rio de Janeiro. O problema desses cinemas novos, a começar pela Nouvelle Vague, o Cinema Novo, é que eles se pautam por uma suposta novidade, uma originalidade. E quando mudar a época, vamos dar o nome de quê?
FC: Aí é um problema dos outros…
C: Mas vai ser sempre nessa linha da novidade. Hoje há uma configuração diferente do que era a década de 1990, assim como essa era diferente da de 1960, e assim por diante. A questão é como a gente vai nomear qualquer mudança na configuração. Talvez seja necessário que a gente dê nomes mais consistentes a essas novas configurações e não simplesmente as chamemos de novas. Vamos fazer o trabalho completo, porque falar só que é novo é uma atitude preguiçosa: significa não ir a essa “nova” configuração e dizer o que ela é, quais são as suas características, apontando o que é novo em relação ao que havia antes.
FC: O Marcelo Ikeda e o Dellani Lima publicaram um livro nomeando essa produção como
Cinema de garagem, uma definição a partir da precariedade das condições de produção.
C: Assim eles demarcam o modo de criação e produção, não demarcam necessariamente um movimento estético, e sim o ambiente. O Paolo Gregori fez uma divisão de que eu gostei muito: ele conceituou o “cinema de galpão” e o “cinema de fundo de quintal”. O “cinema de galpão” é aquele com CNPJ, e o outro, que é feito sem precisar de galpão, é esse “cinema de garagem”. Espaço para isso existe: hoje temos mais festivais de cinema que exibem essas produções, e a forma de produzir está mais fácil. Falta ver o resultado desses filmes e fazer a segunda parte do trabalho, que é tentar ver se acontece de fato uma nova configuração estética. Mas isso ainda é incipiente, a verdadeira chegada do uso de vídeo digital no longa-metragem é muito recente, ela só explode como produção de 2006 para 2007. Foi nesse momento que se teve um volume de produções significativo. Isso não é uma novidade brasileira, é uma novidade mundial, histórica. O digital é um desafio para o cinema do século XXI. O que eu percebo, de um modo geral, é a angústia da criação, porque a gente vive num mundo muito visual e a angústia gira em torno de que filme fazer e como colocá-lo no mundo hoje, quando o dispositivo do cinema já é questionado como algo ultrapassado. Talvez isso seja um ponto em comum que provoque esta inquietação, pelo menos nesses realizadores que não se inserem de primeira na linha de produção. Se a gente for pegar o foco dessa ceninha novíssima, o José Eduardo Belmonte está na periferia e o Lírio Ferreira está quase fora dela. O Lírio foi o primeiro a me falar que sua geração “perdeu” – ele disse assim: “nós fomos um ‘quase’, essa nova geração é que vai vingar”. Ele tem essa consciência. Eu gosto muito de todos os filmes do Belmonte. Gosto dessa sensação de descontrole dos personagens que ele cultiva. O conflito de personagens que ele traz é muito raro no cinema hoje: esse personagem que se descabela, que está lá embaixo, que lida com problemas da vida, de sexo, dinheiro, identidade. Não são problemas interiores abstratos, são problemas físicos que são resolvidos diretamente. Isso eu não vejo com frequência no cinema brasileiro atual, a gente ficou meio
blasé, perdeu a agressividade, e eu sinto falta disso. Existe uma vertente da produção e do pensamento cinematográfico brasileiro que recusa essa proposta de cinema, que é contra a agressividade, contra os excessos, contra mostrar as coisas em primeiro plano. Contra, enfim, o cinema enfrentar determinados limites que eu acho que precisa enfrentar, mesmo que para se enlamear. É o caso, por exemplo, da famosa cena do espancamento da prostituta em
Baixio das Bestas. Eu não compro a tese da misoginia do filme, é preciso ver plano a plano: ele é bem mais elaborado do que essa misoginia que apontam. Assim como acho que, no caso dos filmes do Sérgio Bianchi – como
Mato eles,
Cronicamente inviável,
Quanto vale ou é por quilo, detonam por ele fazer diagnósticos do Brasil. São diagnósticos considerados cínicos e niilistas, mas é assim que o Bianchi vê o Brasil, e é louvável que ele consiga estabelecer uma série de relações entre as coisas que ele percebe, porque a gente vive num momento de crise de relações, de colocar coisas separadas, sem relação entre si. Eu gosto de ver um cineasta que quer falar do Brasil, e não de um personagem ou uma situação específica, mas de problemas culturais, sociais, históricos.
FC: Mas, justamente por causa da complexidade do tema, não teria que ser mais rigoroso consigo próprio?
C: O rigor ou a falta de rigor está no filme, não está isolado no tema. O problema que eu vejo é que quem recusa o Bianchi, recusa de princípio, recusa esse modelo de cinema, essa maneira de olhar as coisas. Tudo bem, eu entendo que possa ser recusado, mas acho que é uma recusa baseada em circunstâncias históricas, pois filmes como este do Bianchi, se fossem deslocados para a década de 1970, pareceriam mais dignos de admiração. Hoje, até para reagir a uma pasmaceira que ele enxerga no próprio cinema, o Bianchi resolve carregar um pouco mais forte nas tintas. Eu não acho que ele seja datado, acho que ele trilha um caminho que só ele está trilhando, ele é solitário, como o Bressane também é do outro lado,
FC: O que o Bressane faz hoje é inovador com relação ao que ele já fez? Ou não é?
C: Isso já é outra história. Nós estávamos falando especificamente de novos realizadores. Se a gente vai falar de Bressane, ou do Saraceni com seu novo filme,
O gerente, aí já é outra história.
FC: Temos visto inovação entre os mais velhos?
C: Eu tenho tido mais interesse em ver filmes de cineastas mais velhos que dos novos. As minhas últimas experiências de ver filmes de cineastas mais velhos foram mais impactantes que ver os dos mais novos.
Serras da Desordem,
Cleópatra,
Falsa loura, esse mais recente do Geraldo Sarno,
O último romance de Balzac, muito ousado. Se pensar em gente de fora do Brasil, tem Manoel de Oliveira, Coppolla, Marco Bellocchio… Nem todos são tão radicais em seus filmes. No caso do Bressane, ele está sempre inventando o cinema novamente. Quando vejo um filme do Bressane, nada do que eu estabeleci como códigos de imagens vale de antemão. É como se a relação com os filmes dele tenha que partir sempre do zero. É a minha aventura com os filmes do Bressane: eu nunca sei o que ele vai fazer nos próximos planos. É o único cineasta que consegue me surpreender de verdade. Ele é muito fiel a si mesmo no que ele vem fazendo, mas ele tem uma certa capacidade de reinventar a própria roda. Eu identifico cada filme dele como algo fiel a ele, só que não dá para juntar
Cleópatra com
A erva do rato e dizer que eles têm uma identidade só. É sempre uma nova experiência, mesmo reconhecendo o Bressane em cada passagem. Eu senti isso com esse do Saraceni. Eu adorei
O viajante, não tenho nenhum interesse pelo filme seguinte,
Banda de Ipanema, não sou um fanático pelos filmes do Paulo Cezar Saraceni, sempre preferi sobretudo
Porto das Caixas e
Arraial do Cabo, mas em
O viajante eu tive a mesma sensação de surpresa que tive quando vi
O gerente. Onde é que está essa inventividade ali? É aí que eu acho que há algo de intangível e invisível na invenção, porque nem sempre a gente consegue defini-la no procedimento – às vezes se define no procedimento, às vezes puramente no efeito. E esse efeito
O gerente tem e os filmes do Bressane também têm. Nos filmes de jovens realizadores eu consigo localizar a matriz desses efeitos, o que também pode ser intuitivo, porque as pessoas não são tão racionais nessas relações estéticas, mas são filmes que têm direções que já sei pra onde vão. Isso eu não vejo no Bressane, nem em
O gerente, e eu diria que ele, o do Sarno e os três últimos filmes do Bressane foram os mais subversivos dos últimos anos. Eu percebi isso no
Filme socialismo, do Godard. Fiquei pensando: “agora sim o Godard vai começar a fazer os seus filmes de velho”. Como o Manoel de Oliveira, agora poder ser menos racional, mais irônico e debochado. Foi o que eu senti com os filmes do Bressane: um velho que está se encaminhando para fazer um cinema cada vez mais debochado e bem humorado.
FC: Qual é a importância da crítica nessa nova cena? E esse rótulo da “nova crítica”?
C: Esse rótulo nomeou o grupo de uma geração que já não é mais nova, que agora já está razoavelmente estabelecida, em alguns casos até institucionalizada. Enfim, ao mesmo tempo que há o vídeo digital para o cinema, hoje há a possibilidade para os críticos publicarem na internet. Geralmente são jovens com muito repertório, muita leitura e muitas horas de filmes apesar de serem jovens. Alguns ainda muito calcados numa crítica e cinefilia francesa dos anos 60/70, sobretudo. Mas tem de tudo na crítica hoje: mais acadêmica, mais informal, puramente sensorial, mais cinéfila, enfim, tem de tudo. Não acompanho muito, não sou um grande leitor de blogs, de sites, nem de jornal. Eu tenho lido textos mais amplos sobre cinema, e não as críticas filme a filme. Mas Tiradentes é sobretudo um grande espaço de discussão para os novos realizadores, e talvez seja o festival de cinema que tenha mais críticos por metro quadrado no Brasil. O Serginho Oliveira, lá de Recife chamou a mostra de “Criticolândia”. Hoje existe uma diversidade bastante grande de críticos na cobertura do festival: Celso Sabadin, Luiz Carlos Merten, Fábio Andrade, Sérgio Alpendre, Rodrigo Fonseca, Filipe Furtado, Luiz Joaquim, a equipe da Filmes Polvo, enfim, críticos bastante diferentes entre si. Essa presença é fundamental para os filmes, porque alguns não se sabe nem quando serão exibidos pela segunda vez e, no entanto, já têm uma fortuna crítica imediata na primeira exibição. Esse confronto entre filmes e críticos é fundamental, e num segundo momento existe essa relação entre crítico e realizador na mesa de debate, com outros críticos e cineastas na plateia fazendo perguntas ou respondendo. A presença da crítica ajuda muito a dar uma aquecida no clima.
FC: Você acha que esse ambiente da crítica interfere nos filmes?
C: Eu conversei recentemente sobre isso com o Sérgio Alpendre, que é muito crítico com relação a essa produção contemporânea, e li também um artigo fazendo um balanço do festival de Cannes de 2005, publicado na Cahiers du Cinéma, Não lembro agora de quem era esse texto, mas o diagnóstico do que era novidade daquele ano era muito próximo do que o Sérgio falava dos filmes exibidos no Aurora de agora. Era isso que estávamos falando aqui: rarefação de planos e do drama, uma narrativa mais frouxa, ambiguidade, recuo da informação das coisas concretas… No artigo francês se usa o termo “formalismo sutil” ou “formalismo discreto”, que pode ser aplicado a muitos filmes recentes. O que eu estava falando com o Sérgio é que, se a gente confere a Contracampo do começo dos anos 200 até 2004, 2005, existia uma tendência geral na revista de se elogiar muito esse tipo de filme. Exatamente esse estilo que o cara diagnostica como um modelo sendo seguido em 2005, em Cannes. Então, aquilo que era uma espécie de programa de formação daquela nova critica dos anos 2000 virou um modelo, e se tornou agora um problema que muitos desses críticos estão tendo que enfrentar. Antes a crítica queria “um cinema brasileiro mais contemporâneo”, aí quando ele procura isso ninguém quer mais. Eu não me ponho fora disso, não: com menos empolgação, eu entendia essa defesa estética e era simpático também a essa ideia. Acho que boa parte desses segundos longas são de realizadores que já têm uma relação com a crítica, uma relação de leitura, de acompanhamento, uma relação que inclusive começa a ter algumas fissuras e ressentimentos a partir do momento em que os filmes começam a ser feitos e debatidos. Já estamos vivendo algumas experiências com jovens realizadores chateados com algumas críticas. Não sei até que ponto isso abala essa relação amistosa e saudável, mas esses realizadores têm que ter maturidade para tratar com a crítica. Eu também fico num papel complicado nesse sentido, porque quem não entra na Mostra de Tiradentes também vem me cobrar, com raras exceções. Eu tenho evitado escrever sobre filmes brasileiros, pelo menos enquanto eu estiver nessa atividade.
FC: Até porque a questão do afeto virou um valor tão celebrado que qualquer nota dissonante já é um problema.
C: Um certo receio do conflito é uma característica muito brasileira. Esse receio do conflito que, talvez, esteja entrando no cerne das nossas organizações dramáticas e narrativas. Por isso que o Belmonte se evidencia como uma exceção, ele bate de frente. Esse medo do conflito afeta muito a relação entre críticos e realizadores: a partir do momento em que o crítico não gosta de tal filme, a relação desanda. Não existe possibilidade de uma relação amistosa dentro do conflito de olhares e de ideias.
FC: Você acha que essa geração de crítica da qual você faz parte está dando origem uma nova geração de críticos que estariam mais aptos a consumir e apreciar este tipo de cinema um pouco mais liberto? O júri jovem de Tiradentes escolheu
Os residentes como melhor filme da mostra. Você acha que essa geração está afinada a este tipo de exigência?
C: Olha, eu acho difícil acontecer algo como aconteceu com a Contracampo, por exemplo, isso de acontecer uma certa contingência histórica e aparecer uma nova geração de jovens para juntos terem a iniciativa de fazer coisas ambiciosas. É muito difícil saber, pois pode haver um monte de gente que eu não conheço nesse Brasil, eu só sei que cada vez mais gente escreve sobre cinema, e que cada vez mais pessoas têm blogs. Mas eu não sei se necessariamente esses jovens que têm blogs e escrevem com seus olhares fariam essa transição de blogueiro cinéfilo para crítico, não sei se as pessoas querem essa relação profissional com o cinema. Quando aconteceu a Contracampo, havia um contexto histórico muito favorável para que aquele movimento surgisse, e eu não sei se esse contexto existe hoje. Eu tenho alunos, por exemplo, que escrevem muito bem sobre cinema, que têm um olhar incrível, mesmo sem repertório, mas eles não querem fazer isso, querem fazer seus filmes. E tenho um outro aluno que é muito teórico e quer fazer mestrado, pois seu interesse é fazer uma pesquisa acadêmica e não uma crítica. A gente, de uma certa forma, não para de ampliar a rede de pesquisadores – a SOCINE , por exemplo, não para de crescer. Por isso que cada vez mais se pode fazer mais em aulas. Há dez anos atrás nós não poderíamos exibir em aula o que estamos exibindo hoje, o que significa que está se abrindo uma porta de referências pra eles enorme, pois está tudo aí disponível. Na universidade, o trabalho a se fazer agora é de organização dessas referências, para não se perder nelas. Está tudo mais fácil, então a abertura para coisas mais estranhas e elaboradas hoje é maior, porque temos também esse trabalho de cultivo. Em Tiradentes, fazendo esse trabalho com o material disponível, estamos tendo resultados interessantes. É um trabalho constante, porque ninguém nasce já sendo de vanguarda.