Brás Cubas Reloaded
                    com fesceninas intromissões por Reinaldo Moraes  
             CAPÍTULO 53 - . . . . . . . . . .
 Machado começa:   "Lembra-me, sim, que, em certa noite, abotoou-se a flor, ou o beijo, se assim lhe quiserem chamar, um beijo que ela me deu, trêmula, - coitadinha, - trêmula de medo, porque era ao portão da chácara."  Daí, começo eu:   "Chamei Virgília na chincha, como os pósteros mais acanalhados hão de dizer do século vinte em diante, algo que me é dado naturalmente saber, agora que desfruto da mais folgada e onisciente eternidade. Foi um amplexo de braços e pernas de sucuri famélica. Aproveitei para tacar-lhe a mão em sua fornida retarguarda, encontrando, em lugar das ansiadas nadegotas, nada além da armação e do estofado da famigerada anquinha que ela usava à ré por baixo do vestido, a empinar-lhe a silhueta feito pata choca, como se usava muito naquele tempo.  Todavia, a minha canhestra tentativa de fazê-la sentir a pujança túrgida do meu membro romântico viu-se em grande parte frustrada pelas insanas camadas de roupa que separavam a minha calça estufada na altura da braguilha da femínea região pubiana que eu tanto ansiava por ver, e tocar, e adentrar, mais ou menos nessa ordem, sem falar nos mais desafiadores seios já vislumbrados num decote nas valsas que havíamos contradaçado nas últimas semanas insanas numa feérica fieira de bailes.   Sob o vestido, abrigava-se uma profusão de sei lá que telas de armação, anáguas de cambraia, camisas de linho, bloomers, espartilhos de barbatana de
tubarão, e mais corseletes, calçolas e calçoletas dos mais finos linhos e da mais alva e suave seda do Império do Meio.  Como diria meu desvairado amigo Quincas Borba, naquele momento Humânitas, o princípio ambivalente da vida, aqui em sua versão masculina, buscava com transcendente energia a Humânitas em versão feminina -- e vice-versa, saliente-se, pois Virgília também parecia desejar-me com fúria. Mas entre Humânitas macho e Humânitas fêmea, interpolava-se a moda, essa intrometida e voluntariosa senhora envolta numa torrente de tecidos, vedando aos olhos e ao desejo do homem o único tecido que verdadeiramente lhe importa -- o insuperável tecido epidérmico com que o Criador revestiu o corpo do primeiro homem saído do barro e, a seguir, o da mulher, feita de matéria mais refinada, qual seja, uma costela de homem al primo canto.  Como que adivinhando minhas ardentes intenções ao enlaçar e juntar seu corpo ao meu, com força e quiçá alguma violência, Virgília deslizou sua mão fina de fada -- num de seus adelgaçados dedos luzia um solitário diamante que refletia e refratava o luar nas cores do arco-íris --, deslizou sua rica mão, eu dizia, até a região central da minha calça que abrigava àquela altura uma contrafação simbólica e miniaturizada de um gigante Adamastor ansioso por adentrar a epopéia, apresentar-se logo no proscênio -- -- "Eu sou aquele oculto e grande Cabo, / A quem chamais vós outros Tormentório", já cantara Camões -- e cumprir com denodada paixão os trêfegos desígnios de Cupido.  Ato contínuo, não me lembra se ela, se eu, ou se o indigitado Cupido, alguém, em todo caso, providenciou a soltura do gigante júnior, expondo o mitológico monstrinho ao sereno e às insidiosas correntes de ar frio que haveriam, anos mais tarde, de levar-me deste mundo, lugar divertido, afinal de contas, ainda que por vezes frustrante, enfadonho e fátuo, como nós viventes sabemos.  Eis que Humânitas, atuando desde as profundezas do psiquismo de Virgília, transmudou-se no mesmo instinto maternal que anima até o coração das feras, como o da loba que amamentou Rômulo e Remo nos mitológicos primórdios da antiguidade romana, e ordenou à sua hospedeira fêmea que se postasse de joelhos à minha frente, e hospedasse em sua boca o cabeçote luzidio do hirto
cetro masculino de Humânitas macho, numa operação que aqueles mesmos romanos antigos houveram por bem apodar de felatio latino.   Sim, eis a verdade deliciosamente nua e crua que nem o manto escuro da noite infinita conseguia ocultar: Virgília sugava e delambia meu phallus indômitus com salivosa sofreguidão, enquanto eu depositava as mãos sobre o capuchinho estilizado que lhe cingia as madeixas castanho- aloiradas, acompanhando o sobe-e-desce daquela cabeça amada que com tanto fervor homenageava minha agora altiva cabeça auxiliar -- a que age sem pensar e sempre a favor de si mesma.  Jogando minha cabeça para trás -- a de cima, no caso --, preparei-me para vivenciar o transe gososo, fluvial, niloamazônico, que logo me acometeu, regido pela ambidestra lei de Humânitas. Por únicas testemunhas, as estrelas sempre complascentes com as loucuras dos amantes de todos os séculos, desde o mais remoto clichê da antiguidade até o maelstron insondável dos tempos futuros. O líquido e certo é que jorrei na boca de Virgília toda a minha felicidade de homem. O que faltou para tal momento atingir um inbaudito ápice poético na história geral das paixões humanas foi que Virgília deu de tossir um pouco, engasgada com a minha descendência descartável, e eu tive que lhe dar tapinhas nas costas, socorrendo a pobrezinha com meu lenço de Alcobaça, já um tanto maculado pelas secreções nasais resultantes do consumo de rapé, e ajudando-a a recobrar a postura bípede."  Conclui Machado:  "Uniu-nos esse beijo único -- breve como a ocasião, ardente como o amor, prólogo de uma vida de delícias, de terrores, de remorsos, de prazeres que rematavam em dor, de aflições que desabrochavam em alegria, -- uma hipocrisia paciente e sistemática, único freio de uma paixão sem freio, - vida de agitações, de cóleras, de desesperos e de ciúmes (...)."  
                                    CAPÍTULO 57 - Destino
           Machado manda:
 Sim senhor, amávamos. Agora, que todas as leis sociais no-lo impediam, agora é que nos amávamos deveras. Achávamo-nos jungidos um ao outro, como as duas almas que o poeta encontrou no Purgatório: Di pari, come buoi, che vanno a giogo; e digo mal, comparando-nos a bois, porque nós éramos outra espécie de animal menos tardo, mais velhaco e lascivo.  E aqui mando eu:  E olhe que, de lascívia e velhacaria, Virgília entendia bem. De lascívia, de velhacaria e de audácia, acrescente-se, pois que nossos encontros eróticos, por dois longos anos a fio, soíam ter lugar sobretudo na alcova conjugal de Virgília e Lobo Neves, seu bastante marido, por insano que isso possa hoje parecer, e era de fato demência pura, posto que a paixão nada mais é que a mais florida loucura.    Ao cabo daqueles dois anos, os três santos de plantão no oratório barroco sobre a cômoda na sagrada alcova matrimonial que adorávamos profanar, entre eles Santa Luzia, a protetora da visão, portando sua bandeja com dois olhos azuis de vidro. A trinca de santidades já devia estar bem habituada aos nossos arroubos dionisíacos diante de seus olhos de madeira policrômica. Confesso que mais de uma vez tive o impulso, de ir lá fechar de par em par as portinholas daquele oratório. Mas sempre achava tarefa mais urgente a desempenhar, ali na cama com Virgília.  Deitávamos e rolávamos sobre o fio da navalha, cancelando de nossas consciências a sempre palpável possibilidade de o Lobo Neves tornar à casa a desoras e nos pilhar em flagrantre deleite em seu próprio leito, tornado palco do mais desgrenhado adultério, sem falar no assédio dos olhos e ouvidos dos fâmulos e mucamas sempre atentos à movimentação íntima de seus amos.  Quanto à criadagem, aliás, foi o gênio burlador de Virgília quem se incumbiu de arquitetar um tão brilhante quão simples estratagema para neutralizar a bisbilhotice dos subordinados. Quando eu aparecia na chácara, sempre nas horas modorrentas da tarde, encaminhavam-me, por determinação da sinhá, ao fumoir do casarão, onde, na companhia do meu "puro" cubano, do Jornal do Commércio e de um cálice do excelente Porto do Lobo Neves, eu passaria
alegadamente algum tempo, uma hora e meia, duas que fossem, à espera do senhor da casa, desenfadando-me destarte do ambiente rotineiro da minha própria vivenda.   Minha presença na saleta ladeada por estantes que subiam até o teto, com livros de todo tipo e tamanho e estatuetas de Sócrates, Goethe e o genial caolho que compôs Os Lusíadas, era certificada pelo aroma pervasivo do El Guanabara, meu charuto preferido, fabricado por um tabaquero de Cuba especialmente para o público brasileiro, e famoso por carburar ininterruptamente até o fim, uma vez aceso, mesmo sem ninguém a fumá-lo. Virgília dava ordens expressas para que eu não fosse jamais, em hipótese alguma, incomodado. Se precisasse de algo, eu mesmo me encarregaria de pedir.  Ocorre que, meros três minutos depois da minha chegada, eu abandonava o charuto a fumegar sozinho, fazendo da minha presença ali mera fumaça. Enquanto isso, a parte mais palpável do meu ser se esgueirava para a alcova do casal, onde, posta apenas num camisão da mais fina cambraia, e já alongada na cama de baldaquim, um capricho aristocratizante do casal, a trêfega Virgília me estendia os braços nus, preâmbulo da nudez total que logo viria a lume.   No vai-da-valsa dos nossos intensos conúbios, Virgília tomava lá suas precauções contraceptivas. Nos períodos em que a senhora Lobo Neves se acreditava fértil -- entre o nono e o décimo-sexto dia, a contar do primeiro dia em que lhe desciam as regras -- eu, involuntário Onan bíblico, era compelido a praticar o desagradável e constrangedor coitus interruptus, derramando minha seiva numa toalhinha providenciada pela prestimosa senhora da casa para tal mister.   Isto, até o dia em que propuz trocarmos a perereca pela marreca nos dias férteis, e também naqueles em que lhe aportava à doca o packet boat, também dito paquete, que vem dar ao porto do Rio de Janeiro, vindo da Inglaterra, a cada 28 dias. Para reforçar meu pleito, entoei um lundu safado muito em voga naquele tempo:
   'Iaiá não teime
   Solte a marreca    Senão eu morro    Leva-me à breca'
 Com o auxílio lubrificante de um balsâmico azeite de oliva extra virgem do Mediterrâneo, ótimo pra pôr em saladas e em rabadas, e de um  travesseiro que Virgília mordia com força, de costas para mim, eu lhe metia meu metafórico charuto na marrequinha com uma devoção priápica que nem Abelardo ousou dedicar a Heloísa, ou Tristão a Isolda, ou Júlio César e Marco Antônio à insaciável Cleópatra, sem embargo da vã jactância varonil."  Volta o Machadão:  "Eis-nos a caminhar sem saber até onde, nem por que estradas escusas; problema que me assustou, durante algumas semanas, mas cuja solução entreguei ao destino. Pobre Destino!"